quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Quatro Quartetos, Burnt Norton I


Burnt Norton é o nome de um castelo situado perto de Campden, Condado de Gloucester, Inglaterra, propriedade do Visconde de Sandon, filho mais velho do Conde de Harrowby. Sabe-se que o primitivo edifício foi consumido pelo fogo em meados do séc. XVII (donde a designação de Burnt Norton, posterior, aliás, à de The Burnt House) e que, em seu lugar, um novo castelo se ergueu, permanecendo desabitado até 1934, quando Eliot o visitou, após um período de férias nas cercanias de Campden. Consta, ainda, que um dos mais ilustres antepassados do poeta, Sir Thomas Elyot, autor do Boke Named the Governour (1531), teria vivido em Burtn Norton, circunstancia essa, entretanto, que Eliot sempre declarou ignorar. Este Quarteto, escrito durante o outono de 1935, foi publicado pela primeira vez a 2 de Abril de 1936, juntamente com as demais obras recolhidas em Collected Poems 1909-35. A primeira edição isolada apareceu a 20 de Fevereiro de 1941.



Diels: Die Fragmente der Vorsokratiker (Herakleitos).

(Embora a razão seja comum a todos, cada um procede como se tivesse um pensamento próprio

O caminho que sobre e o caminho que desce são um único e mesmo.)


I


1          O tempo passado e o tempo presente
2          Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
3          E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo tempo é eternamente presente
Todo tempo é irremediável.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, perpétua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Sob as galerias que não percorremos
13        Em direção à porta que jamais abrimos
14        Para o roseiral. Assim ecoam minhas palavras
Em tua lembrança.
                                             Mas pra quê
Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
Não sei.
                              Outros ecos
No jardim se aninham. Seguiremos?
Depressa, disse o pássaro, procura-os, procura-os
Ali no canto. Pela primeira porta,
Aberta ao nosso mundo primeiro, aceitaremos
A trapaça do torno? Em nosso mundo primeiro.
Lá estavam eles, dignificados e invisíveis,
Movendo-se imponderáveis sobre as folhas mortas,
No calor do outono, através do ar vibrante,
E o pássaro cantou, em resposta
A inescutada música imersa na folhagem.
E um raio-olhar impressentido o espaço trespassou,
                                                                                     [porque as rosas
Flores contempladas recordavam.
Lá estavam eles, como nossos hospedes, acolhidos e
              [acolhedores.
Assim, caminhamos lado a lado, com solene postura,
Ao longo da deserta alameda, rumo à cerca de buxos
Para sondar o tanque dessangrado.
Seco o tanque, concreto seco, calcinados bordos,
E o tanque inundado pela água da luz solar,
E os lótus se erguiam, docemente, docemente,
39        À superfície flamejou no coração da luz,
E eles atrás de nós, no tanque refletidos.
Passou então uma nuvem, e o tanque se apagou.
42        Vai, disse o pássaro, porque as folhas estão cheias de
                                                                                                      [crianças,
43        Maliciosamente escondidas, a reprimir o riso.
44        Vai, vai , vai, disse o pássaro: o gênero humano
45        Não pode suportar tanta realidade.
O tempo passado e o tempo futuro,
O que poderia ter sido e o que foi,
Convergem para um só fim, que é sempre presente.

Tradução de: Ivan Junqueira
Editora: Civilização Brasileira S. A.


NOTAS

1-3         O tempo passado e o tempo presente... Cf. Eclesiastes, III 15: “O que é já foi, e o que há de ser, também já foi...” Idêntica reminiscência nos versos 9-10/47-48 (O que poderia ter sido e o que foi / convergem para um só fim, que é sempre presente) e 156 (e tudo é sempre agora) Nos versos citados, como de resto ao longo dos demais poemas, é visível a influência exercida sobre Eliot para a concepção bergsoniana do tempo. Como se sabe, para o autor de Matiére et Mémoire, o tempo, enquanto durée psicológica, constitui um processo interior da consciência, avesso, como tal, às leis do mecanicismo cientifico e apenas captável mediante a intuição metafísica. Dá-se, assim, uma especialização e uma temporalização, uma duração real e concreta do psíquico, através das quais o pensamento abarca uma coexistência dos momentos passados e presentes, uma percepção para além das abstrações cronológicas. Essa concepção do tempo como fluxo perpétuo, como processo ontológico, como consciência em permanente e dialético devir, é tese já figurada em alguns textos da filosofia pré-socrática, sobretudo em Heráclito de Éfeso (séc. VII A.C.). Em fins do século passado e princípios deste, além de Bergson, reviveu-a Marcel Proust, em à la Recherche Du temps perdu. Em The Family Reunion (1939), Eliot desenvolve pensamento semelhante: “...all past is present, all degradation / Is unredeemable. As for what happens – Of the pas you can only see what is past, / Not what is always present. That is what matters…” e “…everything is irrevocable, / The past unredeemable…”

13-14     Em direção à porta que jamais abrimos / Para o roseiral. Segundo comentadores como Leonard Unger, em T.S Eliot’s Rose Garden: A persistent Theme, a imagem do “roseiral”, um dos temas de maior recorrência em toda a obra de Eliot, pode ser identificada com a idéia de Paraíso. Fonte das mais sugestivas para essa suposição seria Dante, Paradiso, XXXI, 96-99: “a Che priego e amor santo mandommi / vola com li ocche per questo giardono; / Che veder lui l’aconcerá lo sguardo / piú AL montar per lo raggio divino”. Cf. The Family Reunion: “I only  look through the little door/When the Sun was shining on the rose-garden: / And heard in the distance tiny voices….”.

21           Depressa, disse o pássaro… Eclesiastes, XII, 4: “no dia em que não puderes falar em voz alta, te levantes à voz das aves...” O símbolo do pássaro, aliás, não é novo na poesia de Eliot (v. nota seguinte).

39           A superfície flamejou no coração da luz. Cf. Dante, Paradiso, XII, 28: “Del cor dell’uma delle luci nove”.

42-43     Vai, disse o pássaro, porque as folhas estão cheias de crianças, maliciosamente escondidas, a reprimir o riso. Helen Gardner (The Art of T.S Eliot, PP. 159-160) observa: “The image used at the clímax of the children laughing among the leaves of the garden is an image of human happness, of “la douceur de la vie”. It has been suggested to me that the setting may be caught be from Rudyard Kiplings story they”.

44-45     o gênero humano / não pode suportar tanta realidade. A murder in the Cathedral (1935): “Human kind cannot bear veru much reality.”