quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Quatro Quartetos, Burnt Norton I


Burnt Norton é o nome de um castelo situado perto de Campden, Condado de Gloucester, Inglaterra, propriedade do Visconde de Sandon, filho mais velho do Conde de Harrowby. Sabe-se que o primitivo edifício foi consumido pelo fogo em meados do séc. XVII (donde a designação de Burnt Norton, posterior, aliás, à de The Burnt House) e que, em seu lugar, um novo castelo se ergueu, permanecendo desabitado até 1934, quando Eliot o visitou, após um período de férias nas cercanias de Campden. Consta, ainda, que um dos mais ilustres antepassados do poeta, Sir Thomas Elyot, autor do Boke Named the Governour (1531), teria vivido em Burtn Norton, circunstancia essa, entretanto, que Eliot sempre declarou ignorar. Este Quarteto, escrito durante o outono de 1935, foi publicado pela primeira vez a 2 de Abril de 1936, juntamente com as demais obras recolhidas em Collected Poems 1909-35. A primeira edição isolada apareceu a 20 de Fevereiro de 1941.



Diels: Die Fragmente der Vorsokratiker (Herakleitos).

(Embora a razão seja comum a todos, cada um procede como se tivesse um pensamento próprio

O caminho que sobre e o caminho que desce são um único e mesmo.)


I


1          O tempo passado e o tempo presente
2          Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
3          E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo tempo é eternamente presente
Todo tempo é irremediável.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, perpétua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Sob as galerias que não percorremos
13        Em direção à porta que jamais abrimos
14        Para o roseiral. Assim ecoam minhas palavras
Em tua lembrança.
                                             Mas pra quê
Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
Não sei.
                              Outros ecos
No jardim se aninham. Seguiremos?
Depressa, disse o pássaro, procura-os, procura-os
Ali no canto. Pela primeira porta,
Aberta ao nosso mundo primeiro, aceitaremos
A trapaça do torno? Em nosso mundo primeiro.
Lá estavam eles, dignificados e invisíveis,
Movendo-se imponderáveis sobre as folhas mortas,
No calor do outono, através do ar vibrante,
E o pássaro cantou, em resposta
A inescutada música imersa na folhagem.
E um raio-olhar impressentido o espaço trespassou,
                                                                                     [porque as rosas
Flores contempladas recordavam.
Lá estavam eles, como nossos hospedes, acolhidos e
              [acolhedores.
Assim, caminhamos lado a lado, com solene postura,
Ao longo da deserta alameda, rumo à cerca de buxos
Para sondar o tanque dessangrado.
Seco o tanque, concreto seco, calcinados bordos,
E o tanque inundado pela água da luz solar,
E os lótus se erguiam, docemente, docemente,
39        À superfície flamejou no coração da luz,
E eles atrás de nós, no tanque refletidos.
Passou então uma nuvem, e o tanque se apagou.
42        Vai, disse o pássaro, porque as folhas estão cheias de
                                                                                                      [crianças,
43        Maliciosamente escondidas, a reprimir o riso.
44        Vai, vai , vai, disse o pássaro: o gênero humano
45        Não pode suportar tanta realidade.
O tempo passado e o tempo futuro,
O que poderia ter sido e o que foi,
Convergem para um só fim, que é sempre presente.

Tradução de: Ivan Junqueira
Editora: Civilização Brasileira S. A.


NOTAS

1-3         O tempo passado e o tempo presente... Cf. Eclesiastes, III 15: “O que é já foi, e o que há de ser, também já foi...” Idêntica reminiscência nos versos 9-10/47-48 (O que poderia ter sido e o que foi / convergem para um só fim, que é sempre presente) e 156 (e tudo é sempre agora) Nos versos citados, como de resto ao longo dos demais poemas, é visível a influência exercida sobre Eliot para a concepção bergsoniana do tempo. Como se sabe, para o autor de Matiére et Mémoire, o tempo, enquanto durée psicológica, constitui um processo interior da consciência, avesso, como tal, às leis do mecanicismo cientifico e apenas captável mediante a intuição metafísica. Dá-se, assim, uma especialização e uma temporalização, uma duração real e concreta do psíquico, através das quais o pensamento abarca uma coexistência dos momentos passados e presentes, uma percepção para além das abstrações cronológicas. Essa concepção do tempo como fluxo perpétuo, como processo ontológico, como consciência em permanente e dialético devir, é tese já figurada em alguns textos da filosofia pré-socrática, sobretudo em Heráclito de Éfeso (séc. VII A.C.). Em fins do século passado e princípios deste, além de Bergson, reviveu-a Marcel Proust, em à la Recherche Du temps perdu. Em The Family Reunion (1939), Eliot desenvolve pensamento semelhante: “...all past is present, all degradation / Is unredeemable. As for what happens – Of the pas you can only see what is past, / Not what is always present. That is what matters…” e “…everything is irrevocable, / The past unredeemable…”

13-14     Em direção à porta que jamais abrimos / Para o roseiral. Segundo comentadores como Leonard Unger, em T.S Eliot’s Rose Garden: A persistent Theme, a imagem do “roseiral”, um dos temas de maior recorrência em toda a obra de Eliot, pode ser identificada com a idéia de Paraíso. Fonte das mais sugestivas para essa suposição seria Dante, Paradiso, XXXI, 96-99: “a Che priego e amor santo mandommi / vola com li ocche per questo giardono; / Che veder lui l’aconcerá lo sguardo / piú AL montar per lo raggio divino”. Cf. The Family Reunion: “I only  look through the little door/When the Sun was shining on the rose-garden: / And heard in the distance tiny voices….”.

21           Depressa, disse o pássaro… Eclesiastes, XII, 4: “no dia em que não puderes falar em voz alta, te levantes à voz das aves...” O símbolo do pássaro, aliás, não é novo na poesia de Eliot (v. nota seguinte).

39           A superfície flamejou no coração da luz. Cf. Dante, Paradiso, XII, 28: “Del cor dell’uma delle luci nove”.

42-43     Vai, disse o pássaro, porque as folhas estão cheias de crianças, maliciosamente escondidas, a reprimir o riso. Helen Gardner (The Art of T.S Eliot, PP. 159-160) observa: “The image used at the clímax of the children laughing among the leaves of the garden is an image of human happness, of “la douceur de la vie”. It has been suggested to me that the setting may be caught be from Rudyard Kiplings story they”.

44-45     o gênero humano / não pode suportar tanta realidade. A murder in the Cathedral (1935): “Human kind cannot bear veru much reality.”

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O califa de platina




Texto Fonte:
Páginas Recolhidas, Machado de Assis
Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson, 1938.

Publicado originalmente em O Cruzeiro, 9 de abril de 1878.


O califa Schacabac era muito estimado de seus súditos, não só pelas virtudes que o adornavam, como pelos talentos que faziam dele um dos varões mais capazes de Platina. Os benefícios de seu califado, aliás curto, eram já grandes. Ele iniciara e fundara a política de conciliação entre as facções do Estado, animava as artes e as letras, protegia a indústria e o comércio. Se havia alguma rebelião, tratava de vencer os rebeldes; em seguida perdoava-lhes. Finalmente, era moço, crente, empreendedor e patriota.

Uma noite, porém, estando a dormir, apareceu-lhe em sonhos um anão amarelo, que, depois de o encarar silenciosamente alguns minutos, proferiu estas palavras singulares:

— Comendador dos crentes, teu califado tem sido um modelo de príncipes; falta-lhe, porém, originalidade; é preciso que faças alguma coisa original. Dou-te um ano e um dia para cumprir este preceito: se o não cumprires, voltarei e irás comigo a um abismo, que há no centro da Tartaria, no qual morrerás de fome, sede, desespero e solidão.

O califa acordou sobressaltado, esfregou os olhos e reparou que era apenas um sonho. Contudo, não pôde dormir mais; levantou-se e foi ao terraço contemplar as últimas estrelas e os primeiros raios da aurora. Ao almoço, serviram-lhe peras de Damasco. Tirou uma e quando ia a trincá-la, a pêra saltou-lhe das mãos e saiu de dentro o mesmo anão amarelo, que lhe repetiu as mesmas palavras da noite. Imagina-se o terror com que Schacabac as ouviu. Quis falar, mas o anão desaparecera. O eunuco que lhe servira a pêra estava ainda diante dele, com o prato nas mãos.

— Viste alguma coisa? perguntou o califa, desconfiado e pálido.

— Vi que Vossa Grandeza comeu uma pêra, muito tranqüilo, e, ao que parece, com muito prazer.

O califa respirou; depois recolheu-se ao mais secreto de seus aposentos, onde não falou a ninguém durante três semanas. O eunuco levava-lhe a comida, com exclusão das peras. Não lhe aproveitou a exclusão, porque no fim de três semanas, apetecendo-lhe comer tâmaras, viu sair de dentro de uma o mesmo anão amarelo, que lhe repetiu as mesmíssimas palavras de intimação e ameaça. Schacabac não se pôde ter; mandou chamar o vizir.

— Vizir, disse o califa, logo que este acudiu ao chamado, quero que convoques para esta noite os oficiais do meu conselho, a fim de lhes propor alguma coisa de grande importância e não menor segredo.

O vizir obedeceu prontamente à ordem do califa. Naquela mesma noite, reuniram-se os oficiais, o vizir e o chefe dos eunucos; todos estavam curiosos de saber o motivo da reunião; o vizir, porém, mais curioso ainda que os outros, simulava tranqüilamente achar-se na posse do segredo.

Schacabac mandou vir caramelos, cerejas, e vinhos do Levante; os oficiais do conselho refrescaram as goelas, avivaram o intelecto, sentaram-se comodamente nos sofás e cravaram os olhos no califa, que depois de alguns minutos de reflexão, falou nestes termos:

— Sabeis que tenho feito alguma coisa durante o meu curto califado; contudo, ainda não fiz nada que verdadeiramente se possa dizer original. Foi o que me observou um anão amarelo, que me apareceu há três semanas e ainda hoje de manhã. O anão ameaçou-me com a mais afrontosa das mortes, em um abismo da Tartaria, se no fim de um ano e um dia, eu não tiver feito alguma coisa positivamente original. Tenho cogitado dia e noite, e confesso que ainda não achei coisa que merecesse essa qualificação. Por isso vos convoquei; espero de vossas luzes o concurso necessário à minha salvação e à glória da nossa pátria.

O conselho ficou boquiaberto, ao passo que o vizir, a mais e mais espantado, não movia um único músculo do rosto. Cada oficial do conselho fincou a cabeça nas mãos, a ver se descobria uma idéia original. Schacabac interrogava o silêncio de todos, e sobre todos, o do vizir, cujos olhos, fitos no magnífico tapete da Pérsia que forrava o chão da sala, parecia ter perdido a vida própria, tal era a grande concentração dos pensamentos.

Ao cabo de meia hora, um dos oficiais, Muley-Ramadan, encomendando-se a Allah, falou nestes termos:

— Comendador dos crentes, se quereis uma idéia extremamente original, mandai cortar o nariz a todos os vossos súditos, adultos ou menores, e ordenai que a mesma operação seja feita a todos os que nascerem de hoje em diante.

O chefe dos eunucos e diversos oficiais protestaram logo contra semelhante idéia, que lhes pareceu excessivamente original. Schacabac, sem a rejeitar de todo, objetou que o nariz era um órgão interessante e útil ao Estado, porquanto fazia florescer a indústria dos lenços e ministrava anualmente alguns defluxos à medicina.

— Que razão poderia levar-me a privar o meu povo desse natural ornamento? concluiu o califa.

— Saiba Vossa Grandeza, respondeu Muley-Ramadan, que, fundado na predição de um sábio astrólogo de meu conhecimento, tenho por certo que, daqui a um século, há de ser descoberta uma erva fatal ao gênero humano. Essa erva, que se chamará tabaco, será usada de duas formas — em rolo ou em pó. O pó servirá para entupir o nariz dos homens e prejudicar a saúde pública. Desde que os vossos súditos não tenham nariz serão preservados de tão pernicioso costume...

Esta razão foi triunfalmente combatida pelo vizir e todo o conselho, a tal ponto que o califa, aliás inclinado a ela, deixou-a inteiramente de mão. Então o chefe dos eunucos, depois de pedir licença a Schacabac para exprimir um voto, que lhe parecia muito mais original que o primeiro, propôs que dali em diante o pagamento dos impostos passasse a ser voluntário, clandestino e anônimo. Desde que assim for, concluiu ele, estou certo de que o erário regurgitará de sequins; o contribuinte crescerá cem côvados ante a própria consciência; algum haverá que, levado de legítimo excesso, pague duas e três vezes a mesma taxa; e afinado deste modo o sentimento cívico, melhorarão, e muito, os costumes públicos.

A maioria do conselho concordou em que a idéia era prodigiosamente original, mas o califa achou-a prematura, e aventou a conveniência de a estudar e pôr em execução nas proximidades da vinda do Anticristo. Cada um dos oficiais propôs a sua idéia, que foi julgada original, mas não tanto que merecesse ser aceita de preferência a todas. Um propôs a invenção da clarineta, outro a proscrição dos legumes, até que o vizir falou nestes termos:

— Seja-me dado, comendador dos crentes, propor uma idéia que vos salvará dos abismos da Tartaria. É esta: mandai trancar as portas de Platina a todas as caravanas que vierem de Brasilina; que nenhum camelo, se ali recebeu mercadoria ou somente bebeu água, que nenhum camelo, digo eu, possa penetrar as portas da nossa cidade.

Espantado com a proposta, o califa ponderou ao vizir:

— Mas que motivo... sim, é preciso que haja um motivo... para...

— Nenhum, tornou o vizir, e nisto consiste a primeira originalidade da minha idéia. Digo a primeira, porque há outra maior. Peço-vos, e ao conselho, que acompanheis atentamente o meu raciocínio...

Todos ficaram atentos.

— Logo que a notícia de semelhante medida chegar a Brasilina, haverá grande reboliço e estupefação. Os mercadores ficarão pesarosos com o ato, porque são os que mais perdem. Nenhuma caravana, nem ainda as que vêm de Meca, quererá mais parar naquela cidade maldita, a qual (permita-me o conselho uma figura de retórica) ficará bloqueada pelo vácuo. Que acontece? Condenados os mercadores a não mercar para cá, serão obrigados a fechar as portas, ao menos aos domingos. Ora, como há em Brasilina uma classe caixeiral, que suspira pelo fechamento das portas aos domingos, para ir fazer suas orações nas mesquitas, acontecerá isto: o fechamento das portas de cá produzirá o fechamento das portas de lá, e Vossa Grandeza terá assim a glória de inaugurar o calembour nas relações internacionais.

Apenas o vizir concluiu este discurso, todo o conselho reconheceu, unânime, que a idéia era a mais profundamente original de quantas tinham sido propostas. Houve abraços, expansões. O chefe dos eunucos disse poeticamente que a idéia do vizir era “o loto da sapiência brotando junto ao Nilo das necessidades públicas”. O califa manifestou o seu entusiasmo ao vizir, dando-lhe de presente uma cimitarra, uma bolsa com cinco mil sequins e a patente de coronel da guarda nacional.

No dia seguinte, todos os cadis leram ao povo o decreto que mandava fechar as portas da cidade às caravanas de Brasilina. A notícia excitou a curiosidade pública e causou certa estranheza, mas o vizir tivera o cuidado de espalhar pela boca pequena a anedota do anão amarelo, e a opinião pública aceitou a medida como um sinal visível da proteção de Allah.

Daí em diante, por espaço de alguns meses, um dos recreios da cidade era subir às muralhas a ver chegar as caravanas. Se estas vinham de Damasco, de Jerusalém, do Cairo ou de Bagdá, abriam-se-lhe as portas, e elas entravam sem a mínima objeção; mas se alguma confessava que tocara em Brasilina, o oficial das portas dizia-lhe que passasse de largo. A caravana voltava no meio dos apupos da multidão.

Entretanto o califa indagava todos os dias do vizir se constava que em Brazilina se houvesse procedido ao fechamento das portas aos domingos; ao que o vizir invariavelmemte respondia que não, mas que a medida não tardaria a ser proclamada como conseqüência rigorosa da idéia que havia proposto. Nessa esperança, iam voando as semanas e os meses.

— Vizir, disse um dia Schacabac, quer-me parecer que estamos enganados.

— Descanse Vossa Grandeza, retorquiu friamente o vizir; o fato vai consumar-se; assim o exige a ciência.

Pela sua parte, o povo cansou de apupar as caravanas e começou a notar que a idéia do vizir era simplesmente amoladora. Não vinham da Brasilina as mercadorias do costume, nem o povo mandava para lá as suas cerejas, os seus vinagres e os seus colchões. Ninguém ganhava com o decreto. Começou-se a murmurar contra ele. Um boticário (ainda não havia farmacêutico) arengou ao povo, dizendo que a idéia do vizir era simplesmente vã; que jamais o trocadilho das portas fechadas chegaria a ter a mínima sombra de realidade científica. Os doutores eclesiásticos não acharam no Corão um só versículo que pudesse justificar tais induções e esperanças. Lavrava a descrença e descontentamento; começava a soprar uma aragem de revolução.

O vizir não teve só de lutar contra o povo, mas também contra o califa, cuja boa fé começou a desconfiar do acerto do decreto. Três dias antes de chegar o prazo fatal, o califa intimou o vizir a dar-lhe notícia do resultado que prometera ou a substituí-lo por uma idéia verdadeiramente original.

Nesse apertado lance, o vizir chegou a desconfiar de si, e a persuadir-se que aventara aquela idéia, levado do único desejo de desbancar os outros oficiais. Disso mesmo o advertiu Abracadabro, varão exímio na geomancia, a quem consultou sobre o que lhe cumpria fazer.

— Esperar, disse Abracadabro, depois de traçar algumas linhas no chão; esperar até o último dia do prazo fatal marcado ao califa. O que há de acontecer nesse dia, não o pode descortinar a ciência, porque há muita coisa que a ciência ignora. Mas faze isso. No último dia do prazo, à noite, tu e o califa deveis recolher-vos ao mais secreto aposento, onde vos serão servidos três figos de Alexandria. O resto lá saberás; e podes ficar certo de que será coisa boa.

Deu-se pressa o vizir em contar ao califa as palavras de Abracadabro, e, fiados na geomancia, aguardaram o dia último. Veio este, e depois dele a noite. Sós os dois, no mais secreto aposento de Schacabac, mandaram vir três figos de Alexandria. Cada um dos dois tirou o seu e abriu-o; o do califa deu um pulo, subiu ao teto e caiu logo no chão, sob a forma do famoso anão amarelo. Vizir e califa tentaram fugir, correndo às portas; mas o anão os deteve com gesto amigo.

— Não é preciso fugir, disse ele; não venho buscar-te; venho somente declarar que achei verdadeiramente original a idéia do fechamento das portas. Certo é que não deu de si tudo o que o vizir esperava; mas nem por isso perdeu de originalidade. Allah seja convosco.

Livre da ameaça, o califa mandou logo que todas as portas se abrissem às caravanas de Brasilina. O povo aquietou-se; o comércio votou mensagens de agradecimento. E porque o califa e o vizir eram homens instruídos, práticos e dotados de boas intenções, e apenas tinham cedido ao medo, sentiram-se contentes com repor as coisas no antigo pé, e não se encontravam nunca sem dizer ao outro, esfregando as mãos:

— Aquele anão amarelo!

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A mente é uma folha em branco (John Locke)



O Problema: O que é biológico e o que é construído socialmente no ser humano?

A TESE: Polemizando com Descartes, John Locke demonstra com argumentos extraídos da experiência que não existem idéias inatas: as crianças, os loucos e os selvagens não possuem qualquer ideia de Deus nem dos princípios fundamentais geométricos. Isso nos demonstra experimentalmente que não existe nada de inato e tudo é aprendido com a experiência. Para ilustrar essa teoria, Locke recorre a uma metáfora que se tornou celebre: a mente humana é, ao nascer, uma tabula rasa, um papel em branco sobre a qual a prática do mundo externo e a reflexão do individuo sobre si mesmo imprimirão aqueles sinais que denominamos conhecimento. Portanto, revela-se falsa a ideia fundamental do Racionalismo cartesiano, segundo a qual determinadas verdades evidentes e intuitivas (idéias claras e distintas) devem obrigatoriamente preceder qualquer experiência.



Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690)

A teoria cartesiana das idéias inatas.

Alguns consideram, como opinião incontestável, que na inteligência existem certos princípios inatos, certas noções primárias, também denominadas noções comuns, caracteres, por assim dizer, impressos em nossa mente, que a alma recebe desde o primeiro momento da sua existência, carregando-os consigo no mundo.

O aprendizado da experiência basta para explicar toda forma de conhecimento.

Se os meus leitores estivessem livres de todo preconceito, para convencê-los da falsidade dessa suposição bastaria que eu lhes mostrasse como os homens podem adquirir todos os conhecimentos que possuem simplesmente utilizando as suas faculdades naturais, sem recorrer a nenhuma noção inata; e como podem chegar à certeza, sem precisar de tais noções ou princípios originais.

A hipótese dos princípios inatos é antes de tudo, inútil.

Posto que, no meu entender, todos facilmente concordarão que seria impróprio supor inatas as idéias das cores em uma criatura a quem Deus deu a vista e o poder de receber essas idéias através dos olhos, a partir dos objetos externos. E não seria menos irracional atribuir a certas impressões naturais e a certos caracteres inatos o conhecimento que temos de muitas verdades, quando podemos observar em nós mesmos a existência de faculdades apropriadas para nos fazer conhecer aquelas verdades com a mesma facilidade e certeza do que se estivessem impressas na mente desde a origem…

O argumento dos cartesianos: inatas devem ser aquelas idéias universalmente aceitas

Não há opinião mais comumente aceita do que aquela segundo a qual existem princípios, tanto especulativos quanto práticos (pois estamos nos referindo a ambos), com os quais todos os homens concordam e daí se deduz que esses princípios devem ser impressões constantes que a alma do homem recebe junto com a própria existência, e que ela os traz consigo para o mundo de modo tão necessário e real como traz todas as suas faculdades naturais…

Mas efetivamente não existe nenhuma verdade universal

Mas o pior é que o argumento do consenso universal – do qual se faz uso para demonstrar que existem princípios inatos – parece-me uma demonstração do fato de que não existe nenhum princípio semelhante, uma vez que não existe nenhum princípio sobre o qual universalmente todos os homens estejam de acordo.

Crianças e loucos não conhecem nenhum princípio lógico

Em primeiro lugar, é evidente que as crianças e os idiotas não têm a menor percepção desses princípios e absolutamente não pensam neles: o que basta para destruir esse universal consenso, que deveria ser o dado concomitante e necessário de todas as verdades inatas.

A história e a experiência demonstram a inexistência de princípios indiscutíveis

Para saber se existe algum princípio moral com o qual todos os homens concordem, recorro a quem quer que possua um conhecimento mesmo que modesto da história do gênero humano, e que, por assim dizer, tenha olhado para além da fumaça da chaminé da sua casa. Assim, onde estaria uma verdade de ordem prática que fosse universalmente aceita sem nenhuma dúvida ou dificuldade? Como deveria ser se fosse inata?

Se as regras morais fossem inatas, não seriam violadas com tanta facilidade

Além disso, se essas regras da moral são inatas e estão impressas na nossa mente, não posso entender como os homens possam chegar a violá-las tranqüilamente e com plena confiança. Considerai um exército que saqueia uma cidade e vereis que tipo de respeito pela virtude, ou princípio moral, e que remorso de consciência demonstra por todos os crimes que comete. A pilhagem, o homicídio, o estupro são apenas brincadeiras para pessoas a quem se deu imunidade de qualquer punição e censura.

Existe uma diversidade cultural enorme nos costumes e nas leis

Por acaso não existiram nações inteiras, mesmo entre as mais civilizadas, que julgaram totalmente permitido enjeitar as suas crianças e deixá-las morrer de fome ou ser devoradas por animais ferozes? Como era consentido que as colocassem no mundo? Existem ainda hoje países em que recém-nascidos são enterrados vivos com suas mães se estas morrem no parto; ou que são mortos se um pretenso astrólogo declara que nasceram sob uma má configuração astral. Em outros lugares, o filho mata seu pai e sua mãe, sem nenhum remorso, quando eles chegam a uma certa idade… E Garcilaso de la Vega conta que certo povo do Peru costumava deixar vivas as mulheres feitas prisioneiras para fazer delas concubinas, engordava os filhos que tinha com elas e depois os comia, dando o mesmo tratamento à mãe quando esta parava de ter filhos. As virtudes pelas quais os Tupinambás acreditavam merecer o paraíso eram as de vingar-se dos seus inimigos, e comê-los no maior número possível. Não dispunham nem mesmo de um nome para designar Deus e não tinham religião nem culto. Aqueles que os turcos canonizam e colocam entre os santos levam uma vida que não se poderia descrever sem ferir o pudor…

A investigação experimental demonstra a inexistência de uma moral inata

Quem se der ao trabalho de ler a história do gênero humano e com olhar desapaixonado examinar a conduta dos vários povos da Terra se convencerá de que (exceto aqueles deveres que são absolutamente necessários para manter unida a sociedade e que, de resto, são depois freqüentemente violados por sociedades inteiras, vis-à-vis outras sociedades) não deveria mencionar qualquer princípio moral, nem imaginar qualquer regra de virtude que, em algum canto do mundo, não seja desprezada ou contrariada pela prática geral de sociedades humanas inteiras, governadas por máximas de vida prática totalmente opostas àquelas das outras sociedades.

Ao nascer, a mente está vazia, desprovida de qualquer conteúdo.

Suponhamos, portanto, que a mente seja uma folha em branco, desprovida de caracteres, sem nenhuma idéia. De que modo receberá as idéias?

Todo conhecimento nasce da experiência do mundo externo e da reflexão interior

De onde e como as adquire na prodigiosa quantidade que a imaginação do homem sempre ativa e sem limites oferece numa variedade quase infinita? De onde extraiu todos esses materiais da razão e do conhecimento? Respondo: da experiência. É esse o fundamento de todos os nossos conhecimentos; daí extraem a sua origem primeira. As observações que fazemos, seja acerca dos objetos exteriores sensíveis, seja acerca das operações interiores da nossa mente, que percebemos e sobre as quais nós mesmos refletimos, abastecem a nossa inteligência de todos os materiais do pensamento.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Arquitetura da Destruição

Recomendo o documentário Arquitetura da Destruição, um dos mais conceituados sobre o Nazismo. O vídeo no fim da postagem é a primeira parte do documentário, que pode ser encontrado completo e legendado no Youtube.

Este filme é considerado um dos melhores estudos sobre o Nazismo. Lembra que chamar Hitler de artista medíocre não elimina os estragos causados por sua estratégia de conquista universal. O arquiteto da destruição tinha grandes pretensões e queria dar uma dimensão absoluta à sua megalomania. O nazismo tinha como princípio fundamental embelezar o mundo, nem que para isso tivesse que destruí-lo. 

Esse documentário traça a trajetória de Hitler e de alguns de seus mais próximos colaboradores, com a arte. Muito antes de chegar ao poder, o líder nazista sonhou em tornar-se artista, tendo produzido várias gravuras, que posteriormente foram utilizadas como modelo em obras arquitetônicas. 

Destaca ainda a importância da arte na propaganda, que por sua vez teve papel fundamental no desenvolvimento do nazismo em toda a Alemanha. 

Numa época de grave crise, no período entre guerras, a arte moderna foi apresentada como degenerada, relacionada ao bolchevismo e aos judeus. Para os nazistas, as obras modernas distorciam o valor humano e na verdade representavam as deformações genéticas existentes na sociedade; em oposição defende o ideal de beleza como sinônimo de saúde e consequentemente com a eliminação de todas as doenças que pudessem deformar o "corpo" do povo. 

Nasce assim uma "medicina nazista" que valoriza o corpo, o belo e estará disposta a erradicar os males que possam afetar essa obra. 

Do ponto de vista social, o embelezamento é vinculado diretamente à limpeza. A limpeza do local de trabalho e a limpeza do próprio trabalhador. Os nazistas consideram que ao garantir ao trabalhador a saúde e a limpeza, libertam-no de sua condição proletária e, garantem-lhe dignidade de burguês, eliminando portanto a luta de classes. 



sexta-feira, 24 de junho de 2011

Platão - Quem ama deseja o que não tem


O PROBLEMA: O que é o amor?

A TESE: O mito do nascimento de Eros é usado por Platão para ilustrar a característica fundamental do amor: a insuficiência. Ama-se quando se deseja algo que não se tem e por isso o amor pode ser considerado filósofo. De fato, assim como o amor não tem a beleza, mas a deseja, o filósofo anela a sabedoria sem possuí-la. Portanto o amor é essencialmente uma necessidade não satisfeita, a percepção da falta de alguma coisa essencial para a própria completude.
 
O amor é filho da Pobreza e do Expediente.

DIOTIMA: Os demônios são grandes em números e muito diferentes entre si. Eros é um deles.

SÓCRATES: É filho de que pai e de que mãe?

DIOTIMA: Na verdade, é uma história muito longa, mas contarei assim mesmo. Deves saber que no dia em que nasceu Afrodite os deuses deram uma festa e, entre os convidados estava Poros, o Expediente, filho de Métis, a Prudência. Quando terminaram de jantar, como o banquete havia sido suntuoso, chegou Pênia, a Pobreza, com a intenção de mendigar, e postou-se junto à porta. No entretempo, Poros, que se embebedara de néctar (porque o vinho ainda não existia), adentrou ao jardim de Zeus e, entorpecido pela embriaguez, adormeceu. A essa altura, Pênia, que não tinha qualquer recurso, teve a idéia de ter um filho de Poros, e deitou-se ao seu lado: assim, ficou grávida de Eros.

O vinculo entre Amor e Beleza.
 
Foi esse motivo pelo qual Eros tornou-se o companheiro e servente de Afrodite: por ter sido concebido durante os festejos pelo nascimento da deusa, orienta o seu amor para o belo, sendo bela a própria Afrodite.
 
O amor nasce da necessidade e do desejo.

Eis, então, o destino que coube a Eros, como filho de Poros e Pênia. Em primeiro lugar, é sempre pobre e está longe de ser delicado e belo, como imagina a maioria das pessoas; pelo contrario, é rude e intratável, sempre descalço e sem moradia fixa; dorme sobre a terra nua e sem cobertas, deitado sob o céu aberto, junto aos umbrais das portas ou nas ruas... tudo isso porque, partilhando da natureza da mãe, convive com a indigência.
 
O amor é ativo e arrojado.

Mas, em compensação, conforme a natureza do pai, espera a ocasião favorável para lançar mão sobre as coisas boas e belas, porque é corajoso e impulsivo, veemente; hábil caçador, sempre a tramar alguma armadilha; pensador apaixonado, é capaz de encontrar soluções brilhantes para safar-se, e passa todo o seu tempo amando a sabedoria; é experiente em sortilégios, na preparação de filtros mágicos, como um sofista.

A dupla origem do Amor explica a sua natureza contraditória.

Além disso, a sua natureza não é mortal nem imortal: às vezes, no mesmo dia, quando o seu fazer chega a bom termo, é como uma flor, cheio de vida; outras vezes, ao contrario, moribundo; mas eis que novamente volta a viver graças a natureza paterna, mesmo se aquilo que conseguiu lhe escapa invariavelmente das mãos. Desse modo, Eros nunca é pobre, nunca é rico, sendo, por outro lado, um meio caminho entre a sabedoria e a ignorância.


quinta-feira, 23 de junho de 2011

As mudanças na Família, o Orgulho Hetero e as diversas expressões do conservadorismo


No mundo do pós-guerra, inúmeros movimentos sociais foram ganhando força. Desde 1945 até a época atual, os grupos discriminados em função da sexualidade causaram uma gradual mudança na constituição da instituição família, não somente no Brasil, mas em todo o que chamamos de "Ocidente".

Focando o olhar especialmente nas mulheres e nos grupos homoafetivos, as mudanças provocadas graças as lutas políticas em prol das liberdades sexuais levaram à desolidificações (para usar um termo de Marshal Berman), dos antigos pensamentos tidos como "sólidos". Dos velhos comportamentos culturais que levavam à opressão e a repressão da sexualidade, e que motivaram trabalhos eugenistas e grandes violências contra muitos.

No mundo do pós-guerra, o feminismo, e mais futuramente, as lutas contra a homofobia, foram ganhando cada vez mais força, cada vez mais espaços. Existe um processo dialético entre as instituições sociais, uma modificando a outra. As instituições tentam se manter preservadas, "conservadas", e têm em sua natureza estratégias para que isso ocorra, contudo, esse conservadorismo tende à mudança, que é provocada pelas forças políticas nas mais diferentes esferas das relações sociais.

No que uma instituição social muda, as outras mudam com ela. Esse processo pode ser percebido (assim como em qualquer outro na história) no recorte 1945 - até o presente. Quando o feminismo ganhou uma nova força, na década de 60, ao longo dos 50 anos que se seguiria, profundas mudanças na família tradicional à nossa sociedade se fariam reais. Duas delas foram a pílula contraceptiva, e o direito à separação.

A pílula contraceptiva deu a mulher o direito de exercer sua sexualidade sem o ônus que era a possibilidade de engravidar, e ter as obrigações sociais e legais a que uma mãe deveria se submeter. Essa submissão fazia e faz com que a mulher "perca sua vida" (como se diz hoje em dia) aos cuidados maternais. Para o homem, um filho nunca fora o mesmo peso que era para a mulher. O homem poderia e pode negar um filho, mas a mulher não. O homem pode "abortar" um filho, mas a mulher não. Portanto, a pílula contraceptiva abriu margem à possibilidade de uma vida sexual menos contida, mesmo que forças políticas e sociais conservadoras recaíssem e ainda recaiam sobre o uso deste método para não engravidar. (falaremos mais tarde sobre essas forças)

O direito de escolher outro marido, de desconstruir a família da qual estava enterrada, deu a mulher um poder que antes lhe era negado e reconfigurou drasticamente a face da Família Ocidental. No Brasil, esse direito foi alcançado não sem luta política, não sem sanções sociais, mas alcançado pelo processo dialético da mudança social. A Família mudava, o pensamento da mulher mudava, e o Estado se viu obrigado a mudar. Aprovando o direito ao divórcio em 26 de dezembro de 1977.

O mesmo processo foi feito pelos grupos homoafetivos, que lutavam pelos seus direitos. Recentemente, a aprovação a união estável homoafetiva deu aos gays um aparato legal para exercerem não outra coisa se não o casamento tradicional à nossa sociedade. Mas os gays reconfiguraram e lançaram novos paradigmas à sociedade. Lançaram novas questões, novas manifestações de lazer, e sobretudo, novas possibilidades. Não somente os gays, nem as mulheres, mas todo o conjunto de novas filosofias e de novos pensadores e poderes políticos (como também econômicos) abriram um leque de POSSIBILIDADES que, acredito, a sociedade ainda está mastigando.

Uma vez mais podemos constatar que mudando-se uma instituição social, as outras também irão mudar (para mais ou para menos). No mesmo conflito de forças políticas, de interesses (que ao meu ver é o combustível de toda relação social), a família modificada obrigou o Estado a modificar, "obrigou" o STF a aprovar a lei que regulamentava a união estável homoafetiva. Um dos argumentos usados pelo STF era de que as relações homoafetivas já se configuravam como casamentos reais e cotidianos, precisava-se portanto de uma lei para a regulamentação desse tipo de relação por parte do Estado.  -  que é também uma instituição social.

Não se pode deixar de falar sobre as velhas e as novas manifestações do conservadorismo que vão de encontro a essas mudanças, e principalmente, devemos falar sobre o que essas manifestações conservadoras tentam conservar, como também as consequências dessa conservação para a psicologia dos indivíduos.

Em todos esses casos, em todas as vitórias do movimento feminista, do movimento homossexual, do movimento negro, ou qualquer movimento que tente buscar a emancipação pessoal de um grupo outrora oprimido de alguma forma, os conservadores se posicionaram contrários. Quando as mulheres quiseram votar, os conservadores alegaram que as mulheres não tinham consciência política (ou humanidade?) suficiente para isso. Quando chegou a pílula, as Igrejas Cristãs, conservadoras que são, se posicionaram contrárias. Agora, quando uma Igreja tenta impedir as mulheres de não engravidar numa relação sexual, o que ela está fazendo? Está dando sentido a opressão sexual dos homens sobre as mulheres, ou da emancipação da vontade e a manifestação da IGUALDADE entre os gêneros? Esse voto pela não tomada da pílula contraceptiva, acarreta em que conseqüências sociais e psicológicas para a vida das mulheres? Que não tomando ganhariam um filho e todas as obrigações que isso trás, "perdendo suas vidas". Perdendo futuras liberdades, amarradas nas correntes sociais e psicológicas que a atariam agora e para sempre, afinal, como diz também o senso comum, "filho é para o resto de vida".

Em todo o recorte que faço, desde 45 até o dia de hoje, os grupos conservadores no Estado, na Igreja, na Família, na Escola lutaram politicamente defendendo discursos sobre o fim dos tempos. Quando o debate sobre o "casamento gay" estourou no Brasil ainda há pouco, os clérigos profetizavam o apocalipse, alegando que o casamento gay era contrário a uma "natureza humana", ou contrário a um "modelo sagrado de família". E vem os discursos às apelações emocionais, que em grande partes estão embebedadas de conservadorismo.

Ontem (22/06/2011) foi Treding Topic Brazil, no Twitter, a tag "Orgulho Hetero", muitos, como se pode imaginar, defendiam o movimento social dos "orgulhosos de serem heterossexuais". Qual é a contradição nesse "movimento social"? A história é quem nos mostra.

Os "heterossexuais" nunca foram discriminados em função da sua orientação sexual, seja homem ou mulher, um heterossexual não sofre sanções ou sofreram sanções que os gays e os negros sofreram. O movimento do Orgulho Hetero, tenta uma desconfiguração, uma negação e uma inversão da história. Os homossexuais e os negros morreram no nazismo, e sofreram diversas outras formas de manifestações da violência; os homossexuais sofreram e sofrem desde a violência sexual (com os estupros corretivos), psicologica (no âmbito da família, por exemplo), ou simbólicas (com professores e líderes homofobicos). Os negros sofreram sanções políticas, econômicas, institucionais, foram submetidos a guetos e etc.

O Orgulho Gay e o Orgulho Negro são movimentos criados para tentar introduzir políticas afirmativas, para que de alguma maneira essas pessoas se sintas mais humanos num mundo em constante trabalho de desumanização. São movimentos "para levantar o astral" e levar as pessoas á luta, para tentar mostrar que para além da psicologia minada, para além dos estigmas sociais, pode existir um mundo de possibilidade igualitárias, se houver luta política.

Já os "heterossexuais" nunca tiveram sua sexualidade estigmatizada, nunca morreram no nazismo devido a sua heterossexualidade. Nunca sofreram os diversos tipos de bullying em função da sua sexualidade. Pelo contrário, sempre foram a sexualidade dominante, tida como normal, tida como natural, tida como superior, divina, assim como a pele branca e os olhos azuis, em nossa sociedade, em nossa história.

Esses "Orgulhos" Branco e Hetero não têm uma negatividade na sua natureza de coisa, mas a verdadeira intenção desses discursos é a tentativa de retomar as normas. E se alega que o mundo está "dominado" pelos gays ou pelos negros, ou pelas mulheres. Ora, as pessoas não são impedidas de andar de mãos dadas com o sexo oposto, nem de se casar com o sexo oposto, as pessoas não são expulsas de casa por serem heterossexuais, nem sofrem qualquer violência em função disso, ao contrário, são assegurados pelas instituições e pelas leis. E não existe, é lógico, nada de errado em ser heterossexual.


O que as lutas políticas dos oprimidos contra os opressores fizeram não foi uma "revolução social", essas lutas não revolucionaram a política, nem a economia, nem as instituições, elas apenas fizeram e continuam tentando por os discriminados em situação de paridade com o resto da raça humana. Essas lutas não "revolucionaram" coisa nenhuma, apenas asseguraram o direito dos discriminados serem um pouco mais humanos.

O casamento gay é uma instituição conservadora, ela não inova nada que não seja  o gênero dentro de uma nova família nuclear burguesa. Ela continua com os mesmo parâmetros. E os gays, conservadores como são, ainda preservaram os modelos de namoro, noivado e casamento. Mesmo que tenham aberto os olhos para as inúmeras possibilidades de vida conjunta. As mulheres apenas se equipararam aos homens, não criaram nada que os homens não tenham feito anteriormente.

Mas o produto que eu considero primordial desses processos políticos, afora certas "liberdades", é a possibilidade de a sociedade questionar suas próprias maneiras de existir culturalmente. E isso fica claro. Os antigos sólidos se desmancharam no ar, e as pessoas tentam se agarrar a novas identidades, que também teimam em se desmanchar no ar. O que me parece importante notar é a possibilidade que o capitalismo e a nossa sociedade capitalista abriu (mais para quem tem mais dinheiro, e menos para quem tem menos) de ESCOLHAS.

Agora, mesmo os heterossexuais, podem escolher transar com várias mulheres, se casar com várias mulheres, firmarem o contrato que desejarem. Os gays também podem firmar o contráto de familiar que quiserem, de ter ou não filhos, e a quantidade de filho. De uma forma ou de outra. Mesmo com tantas limitações, penso ser produto do capitalismo, e da nossa sociedade, essas liberdades e possibilidades.

Naturalmente que no mundo não se escolhe certas coisas com facilidade. Mas a nossa sociedade, foi a única que desenvolveu uma racionalização da política a este nível. Uma racionalização da democracia, uma universalização de valores, mesmo com tantos "problemas". Não consigo imaginar uma sociedade perfeita, seja ela o modelo mais comunista ou mais capitalista, mas creio que uma sociedade que tente cada vez mais permitir a possibilidade de escolhas de vida para seus indivíduos e grupos, a possibilidade de ser macheira, de ser viado, de ser travesti, de fazer ménage, de fazer troca de casais, de ser conservador, de ser protestante, enfim, de ser o que quiser, desde que não interfira negativamente no outro, uma sociedade que tente cada vez mais, através de suas lutas, permitir essas possibilidades, estará num bom caminho para a emancipação humana. Que não acaba nunca.

Leonardo Antunes