sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A mente é uma folha em branco (John Locke)



O Problema: O que é biológico e o que é construído socialmente no ser humano?

A TESE: Polemizando com Descartes, John Locke demonstra com argumentos extraídos da experiência que não existem idéias inatas: as crianças, os loucos e os selvagens não possuem qualquer ideia de Deus nem dos princípios fundamentais geométricos. Isso nos demonstra experimentalmente que não existe nada de inato e tudo é aprendido com a experiência. Para ilustrar essa teoria, Locke recorre a uma metáfora que se tornou celebre: a mente humana é, ao nascer, uma tabula rasa, um papel em branco sobre a qual a prática do mundo externo e a reflexão do individuo sobre si mesmo imprimirão aqueles sinais que denominamos conhecimento. Portanto, revela-se falsa a ideia fundamental do Racionalismo cartesiano, segundo a qual determinadas verdades evidentes e intuitivas (idéias claras e distintas) devem obrigatoriamente preceder qualquer experiência.



Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690)

A teoria cartesiana das idéias inatas.

Alguns consideram, como opinião incontestável, que na inteligência existem certos princípios inatos, certas noções primárias, também denominadas noções comuns, caracteres, por assim dizer, impressos em nossa mente, que a alma recebe desde o primeiro momento da sua existência, carregando-os consigo no mundo.

O aprendizado da experiência basta para explicar toda forma de conhecimento.

Se os meus leitores estivessem livres de todo preconceito, para convencê-los da falsidade dessa suposição bastaria que eu lhes mostrasse como os homens podem adquirir todos os conhecimentos que possuem simplesmente utilizando as suas faculdades naturais, sem recorrer a nenhuma noção inata; e como podem chegar à certeza, sem precisar de tais noções ou princípios originais.

A hipótese dos princípios inatos é antes de tudo, inútil.

Posto que, no meu entender, todos facilmente concordarão que seria impróprio supor inatas as idéias das cores em uma criatura a quem Deus deu a vista e o poder de receber essas idéias através dos olhos, a partir dos objetos externos. E não seria menos irracional atribuir a certas impressões naturais e a certos caracteres inatos o conhecimento que temos de muitas verdades, quando podemos observar em nós mesmos a existência de faculdades apropriadas para nos fazer conhecer aquelas verdades com a mesma facilidade e certeza do que se estivessem impressas na mente desde a origem…

O argumento dos cartesianos: inatas devem ser aquelas idéias universalmente aceitas

Não há opinião mais comumente aceita do que aquela segundo a qual existem princípios, tanto especulativos quanto práticos (pois estamos nos referindo a ambos), com os quais todos os homens concordam e daí se deduz que esses princípios devem ser impressões constantes que a alma do homem recebe junto com a própria existência, e que ela os traz consigo para o mundo de modo tão necessário e real como traz todas as suas faculdades naturais…

Mas efetivamente não existe nenhuma verdade universal

Mas o pior é que o argumento do consenso universal – do qual se faz uso para demonstrar que existem princípios inatos – parece-me uma demonstração do fato de que não existe nenhum princípio semelhante, uma vez que não existe nenhum princípio sobre o qual universalmente todos os homens estejam de acordo.

Crianças e loucos não conhecem nenhum princípio lógico

Em primeiro lugar, é evidente que as crianças e os idiotas não têm a menor percepção desses princípios e absolutamente não pensam neles: o que basta para destruir esse universal consenso, que deveria ser o dado concomitante e necessário de todas as verdades inatas.

A história e a experiência demonstram a inexistência de princípios indiscutíveis

Para saber se existe algum princípio moral com o qual todos os homens concordem, recorro a quem quer que possua um conhecimento mesmo que modesto da história do gênero humano, e que, por assim dizer, tenha olhado para além da fumaça da chaminé da sua casa. Assim, onde estaria uma verdade de ordem prática que fosse universalmente aceita sem nenhuma dúvida ou dificuldade? Como deveria ser se fosse inata?

Se as regras morais fossem inatas, não seriam violadas com tanta facilidade

Além disso, se essas regras da moral são inatas e estão impressas na nossa mente, não posso entender como os homens possam chegar a violá-las tranqüilamente e com plena confiança. Considerai um exército que saqueia uma cidade e vereis que tipo de respeito pela virtude, ou princípio moral, e que remorso de consciência demonstra por todos os crimes que comete. A pilhagem, o homicídio, o estupro são apenas brincadeiras para pessoas a quem se deu imunidade de qualquer punição e censura.

Existe uma diversidade cultural enorme nos costumes e nas leis

Por acaso não existiram nações inteiras, mesmo entre as mais civilizadas, que julgaram totalmente permitido enjeitar as suas crianças e deixá-las morrer de fome ou ser devoradas por animais ferozes? Como era consentido que as colocassem no mundo? Existem ainda hoje países em que recém-nascidos são enterrados vivos com suas mães se estas morrem no parto; ou que são mortos se um pretenso astrólogo declara que nasceram sob uma má configuração astral. Em outros lugares, o filho mata seu pai e sua mãe, sem nenhum remorso, quando eles chegam a uma certa idade… E Garcilaso de la Vega conta que certo povo do Peru costumava deixar vivas as mulheres feitas prisioneiras para fazer delas concubinas, engordava os filhos que tinha com elas e depois os comia, dando o mesmo tratamento à mãe quando esta parava de ter filhos. As virtudes pelas quais os Tupinambás acreditavam merecer o paraíso eram as de vingar-se dos seus inimigos, e comê-los no maior número possível. Não dispunham nem mesmo de um nome para designar Deus e não tinham religião nem culto. Aqueles que os turcos canonizam e colocam entre os santos levam uma vida que não se poderia descrever sem ferir o pudor…

A investigação experimental demonstra a inexistência de uma moral inata

Quem se der ao trabalho de ler a história do gênero humano e com olhar desapaixonado examinar a conduta dos vários povos da Terra se convencerá de que (exceto aqueles deveres que são absolutamente necessários para manter unida a sociedade e que, de resto, são depois freqüentemente violados por sociedades inteiras, vis-à-vis outras sociedades) não deveria mencionar qualquer princípio moral, nem imaginar qualquer regra de virtude que, em algum canto do mundo, não seja desprezada ou contrariada pela prática geral de sociedades humanas inteiras, governadas por máximas de vida prática totalmente opostas àquelas das outras sociedades.

Ao nascer, a mente está vazia, desprovida de qualquer conteúdo.

Suponhamos, portanto, que a mente seja uma folha em branco, desprovida de caracteres, sem nenhuma idéia. De que modo receberá as idéias?

Todo conhecimento nasce da experiência do mundo externo e da reflexão interior

De onde e como as adquire na prodigiosa quantidade que a imaginação do homem sempre ativa e sem limites oferece numa variedade quase infinita? De onde extraiu todos esses materiais da razão e do conhecimento? Respondo: da experiência. É esse o fundamento de todos os nossos conhecimentos; daí extraem a sua origem primeira. As observações que fazemos, seja acerca dos objetos exteriores sensíveis, seja acerca das operações interiores da nossa mente, que percebemos e sobre as quais nós mesmos refletimos, abastecem a nossa inteligência de todos os materiais do pensamento.

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